29.10.20

Marcelo von Saltiel de Andrade

O USO DOS ANTECEDENTES CRIMINAIS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NO TRIBUNAL DO JÚRI



 

 

O USO DOS ANTECEDENTES CRIMINAIS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NO TRIBUNAL DO JÚRI

 

Não rara às vezes, o promotor de justiça (acusação) observando que nos autos existe apenas prova indiciária (pobre e fraca) ou até mesmo a inexistência de provas robustas da participação do acusado no fato criminoso, utiliza-se do passado, da vida pregressa do denunciado na sua fala - prática odiosa e que deve ser rebatida de forma contundente e firme pelo tribuno.

O conhecimento dos antecedentes criminais do réu pelos jurados influencia sim a formação de seus juízos de culpabilidade, sendo certo que muitas vezes não condenam pelo crime doloso contra a vida que lhes é apresentado, mas condenam a pessoa do acusado em face de seus antecedentes. ABSURDO TOTAL E ABSOLUTO.

A utilização dos antecedentes criminais do acusado pelo MP durante a sustentação oral nos julgamentos do Tribunal do Júri DEVERIA ser causa de nulidade absoluta (não é o caso, pois o STJ nas turmas 5° e 6° - já decidiram que não é causa de nulidade absoluta)1, de modo que influi indevidamente na formação do convencimento dos jurados, caracterizando, tal prática, verdadeiro “direito penal do autor”.


1“1. De acordo com a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça o rol do art. 478 do CPP é taxativo. 2. Nessa linha, esta Corte Superior, também, decidiu que a referência feita pelo Parquet durante os debates no julgamento perante o Tribunal do Juri, dos antecedentes do réu, não se enquadra nos casos apresentados pelo art. 478, incisos I e II, do Código de Processo Penal, inexistindo óbice à sua menção por quaisquer das partes (HC n. 333.390/MS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Sexta turma, julgado em 18/8/2016, DJe 5/9/2016). 3. Agravo regimental não provido” (AgRg no REsp 1.815.397/RS, 5ª Turma, j. 18/06/2019). “[…]


2. Constatada que a decisão do Conselho de Sentença veio lastreada em vasto conjunto probatório, especialmente colhido em prova oral, inexistindo, assim, comprovação de que os antecedentes criminais do agravante tenham efetivamente corroborado para o veredicto, não há que se falar em nulidade do julgamento pelo Tribunal do Júri. 3. In casu, a referência feita pelo Parquet durante os debates no julgamento perante o Tribunal do Juri, dos antecedentes do réu, não se enquadra nos casos apresentados pelo art. 478, incisos I e II, do Código de Processo Penal, inexistindo óbice à sua menção por quaisquer das partes. 4. Habeas corpus não conhecido” (HC 333.390/MS, 6ª Turma, j. 18/08/2016).

 

Por outro lado, existe poucas decisões no âmbito dos Tribunais Superiores em relação ao tema. Contudo, o Código de Processo Penal em seu artigo 478 elenca condutas que geram nulidade do júri, em análise acurada do dispositivo, o legislador veda atos que geram prejuízos à defesa com o intuito de garantir a ampla defesa e o julgamento justo, ora, se a exposição dos antecedentes é um ato que prejudica a defesa do réu, logo, por expressa previsão legal do artigo 3º do mesmo diploma, admite-se a interpretação extensiva e aplicação analógica à lei processual penal, bem como a aplicação dos princípios gerais do direito, conforme o julgado abaixo:


PROCESSO PENAL. HOMICÍDIO TENTADO. JUNTADA DE ANTECEDENTES CRIMINAIS E INFORMAÇÕES ACERCA DA VIDA PREGRESSA DO ACUSADO. RESPEITO AO ART. 422 DO CPP. UTILIZAÇÃO DE TAIS DOCUMENTOS COMO ARGUMENTO DE AUTORIDADE NA SESSÃO PLENÁRIA DO TRIBUNAL DO JÚRI (DIREITO PENAL DO AUTOR). IMPOSSIBILIDADE. 1. No procedimento dos crimes dolosos contra a vida, a lei processual penal admite a juntada de documentos pelas partes, mesmo após a sentença de pronúncia, a teor do art. 422 do Código de Processo Penal (HC n. 373.991/SC, Relator Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, DJe de 1º/2/2017). 2. Assim, inexiste constrangimento ilegal na juntada, a tempo e modo, dos antecedentes policial e judicial do réu, inclusive as infrações socioeducativas. 3. No entanto, em se tratando do exame dos elementos de um crime, em especial daqueles dolosos contra a vida, o fato não se torna típico, antijurídico e culpável por uma circunstância referente ao autor ou aos seus antecedentes, mesmo porque, se assim o fosse, estaríamos perpetuando a aplicação do Direito Penal do Autor, e não o Direito Penal do Fato. Desse modo, para evitar argumento de autoridade pela acusação, veda-se que a vida pregressa do réu seja objeto de debates na sessão plenária do Tribunal do Júri. 4. Recurso ordinário em habeas corpus provido em parte, para que os documentos relacionados à vida pregressa do recorrente e que não guardam relação direta com o fato não sejam utilizados pela acusação na sessão plenária do Tribunal do Júri. (RHC 94.434/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 13/03/2018, DJe 21/03/2018)

 

Sobre o conceito de “direito penal do autor”, a mais humana e balizada doutrina ensina que:


Nos dizeres de Zaffaroni e Pierangeli: “Um direito que reconheça, mas que também respeite a autonomia moral da pessoa, jamais pode penalizar o ser de uma pessoa, mas somente o seu agir, já que o próprio direito é uma ordem reguladora de conduta humana. Não se pode penalizar um homem por ser como escolheu ser, sem que isso violente a sua esfera de autodeterminação (...)”


O professor Nilo Batista também preconiza que: “O que é vedado pelo princípio da lesividade é a imposição de pena (isto é, a constituição de um crime ) a um simples estado ou condição desse homem, refutando-se , pois, as propostas de um direito penal de autor e suas derivações mais ou menos dissimuladas (tipos penais de autor, culpabilidade pela conduta ao longo da vida, etc.).”


É de conhecimento notório de quem atua na área criminal, que o atual ordenamento jurídico brasileiro é concebido para que o acusado seja condenado pelos fatos narrados na denúncia, que estão sob a ótica de um “restrito” processo e consequente julgamento, não por aquilo que ele é (ou, ao menos, que a acusação diz ser) ou fez no passado.


Desta forma, trabalha-se com um direito penal do fato e, até mesmo por força constitucional, repele-se um possível “direito penal do autor”. Ocorre que alguns resquícios do “direito penal do autor” ainda sobrevivem, indevidamente, no ordenamento jurídico vigente, como é o caso do artigo 59 do Código Penal, que impõe ao Magistrado, na aplicação da pena base, que, dentre outras circunstâncias, leve em consideração os “antecedentes” do agente; bem como no caso da circunstância agravante genérica contida no artigo 61, inciso I, também do Código Penal, que diz sempre agravar a pena, quando não constituir o próprio delito ou qualificá-lo, a “reincidência”.


Deve-se frisar que os exemplos acima ilustrados, que persistem no ordenamento vigente, além de caracterizarem algo nefasto que é o “direito penal do autor”, configuram, ainda, um “bis in idem”, uma vez que o agente já foi processado penalmente pelos delitos anteriores e, muitas vezes, cumpriu integralmente a pena que lhe foi imposta, respondendo, novamente, por uma dívida que já havia quitado.


À luz do sobredito princípio, não há como aceitar a realização de um julgamento com base no “direito penal do autor”, porquanto se estaria derrubando por terra todas as conquistas da humanidade na seara dos direitos humanos, as quais visam justamente coibir as arbitrariedades e injustiças cometidas em épocas passadas.


Porto Alegre, 29 de setembro de 2020

 

Marcelo von Saltiel de Andrade

Advogado Criminalista, Especialista em Ciências Criminais pela PUC/RS, Especialista em Direitos Humanos pela Rede de ensino LFG, Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNIRITTER, Membro da ACRIERGS.

 

- ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 7.ed. São Paulo: Revista dosTribunais, 2008. v.1, p.107.

- BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 9.ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2004, p.93- 94.